FONTE: Essa matéria foi publicada na Edição 470 do Jornal Inverta, em 16/01/2014
Amok Teatro é uma Companhia Teatral fundada em 1998 no Brasil, dirigida por Ana Teixeira e Stephane Brodt, com sede em Botafogo, no Rio de Janeiro, desde 2004.
Ana e Stephane se conheceram na França na Escola de Mímica Dramática com a técnica de Etiénne Decroux e de lá trouxeram o rigor e a prontidão de um teatro visto através do corpo do ator.
Em 15 anos, já mediaram o processo de dez peças teatrais, onde pesquisaram intensamente a cultura de povos diferentes, provocando reflexão sobre condicionamentos sociais envolta da identidade humana e sem fronteiras. Além disso, Amok Teatro desenvolvem oficinas de treinamento e criação das quais participam anualmente atores de diversas regiões do país, fomentando outros grupos teatrais.
INV - Qual foi o processo de formação de vocês que contribuiu para a fundação do Amok Teatro? ANA:
Primeiro comecei com a pedagogia, onde trabalhei muito tempo com a alfabetização de adultos pautada no método de Paulo Freire e eu já vinha fazendo paralelamente formação em dança clássica e contemporânea, onde encontrei outra mestra chamada Angel Viana. Daí eu fui para a França.
Lá eu me formei com a técnica de Etiénne Decroux, outro grande mestre que fundou uma gramática corporal para o ator, um homem que estudou sua vida inteira para investigar a arte do ator, suas leis e seus mistérios.
Fiz outra formação paralela no Instituto de Estudos Teatrais em Paris (Sorbonne) e foi ali que eu conheci Jacques Pimpaneau, um grande sinólogo que me despertou o interesse pelo Teatro Oriental.
A Partir da daí, fui várias vezes para Bali, conheci a dança e o teatro tradicional de máscaras balinesas. Isso tudo compôs uma rede de amparo para as minhas quedas e questionamentos.
Bem... e o Stephane veio de uma formação em uma escola clássica da Comédie Française, depois ele foi aluno do Marcel Marceau.
Ele também passou pela escola de mímica dramática de Decroux; aliás, foi lá que nos conhecemos.
E ele ainda entrou no Theatre Du Soleil, que é o lugar onde se aprende no fazer, ao lado de uma grande encenadora chamada Ariane Mnouchkine.
INV - Quais são os teóricos teatrais que fizeram parte da base inicial do Amok Teatro em 1998? ANA:
Ariane Mnouchkine nos deixou uma marca política e metodológica Antonin Artaud, que pensou o teatro poeticamente e que continua nos provocando, ele é o nosso pilar.
Etiénne Decroux e toda uma corrente do Teatro Francês como o Jacques Copeau que foi um grande pensador.
Eu diria que Decroux considerava o Copeau seu grande mestre, mas Copeau era um monarquista, enquanto que Decróux um anarquista.
Decroux ergueu o teatro como um projeto político antes mesmo de artístico. Um grande artista que nos marcou também foi o Tadeusz Kantor, com o Teatro da Morte, que é muito perto do teatro de aparições e não de aparências (de Artaud)
INV - Como foi a primeira turnê mundial? A peça? O processo? As principais dificuldades? O Objetivo?
ANA:
Não fizemos turnê mundial ainda, pois dá uma ideia de que rodamos o mundo. Mas a primeira vez que saímos do Brasil com uma peça, fomos para Argentina com o espetáculo “Cartas de Rodez” e o objetivo crucial era mostrar o nosso trabalho para mais gente.
Falando isso me lembro de Artaud quando disse “Eu quero que todos ouçam meu grito de dor”.
E esse texto a gente apresentou muito na área médica por conta da psiquiatria, a nossa estreia foi no Pinel. Depois fomos para Sérvia e agora em Edimburgo.
Rodamos, sim, com o Theatre du Soleil e com outras Cias em que trabalhamos na Europa, mas com o Amok Teatro não.
Com o Amok nós fizemos turnês enormes pelo Brasil e queremos continuar, apesar de ano que vem irmos para a China e com a possibilidade de Itália e África do Sul.
No Brasil já rodamos 65 cidades. Se apresentar fora dá um parâmetro diferente e nos faz questionar qual é o papel que temos e desejamos.
Foi muito bom sermos uma cia brasileira, apresentando uma peça sobre o Afeganistão, na Escócia e agradando o público chinês.
Outra coisa interessante também é perceber a questão da língua afetiva, como o público capta a língua.
E o que é lindo no teatro é isso, o encontro, pois o teatro está calcado na copresença.
INV - Como foi o processo para o Stephane enquanto ator em Cartas de Rodez?
ANA:
Nós precisávamos de um espetáculo para ser o nosso primeiro passo e fundar a companhia.
Pois, quando a gente vem de uma formação ao lado de grandes mestres, se tem uma força muito grande, mas ao mesmo tempo se tem um desafio, porque nós não somos eles. Com eles, temos uma casa e por isso não nos perdemos, pois nós transportávamos o nosso teatro em nosso corpo.
Mas era preciso descobrir o nosso teatro. E aí Antonin Artaud foi importante para este processo, pois ele trouxe o novo para nós.
Estávamos em Miguel Pereira com uma sala de trabalho para fazer uma peça sobre o Artaud. Foi um processo árduo.
No início de Cartas de Rodez, a proposta era confrontar a técnica de Decroux com Artaud e foi muito curioso porque eles eram bem diferentes, Decroux era um homem sistemático, enquanto que Artaud era uma erupção.
E foi desse atrito que começamos o nosso trabalho.
INV - E o primeiro Projeto Paralelo em que vocês dirigiram Memórias de um Velho Mundo? Como foi?
ANA:
Foi quando nós chegamos ao Brasil em 1996 e fomos convidados para dar aula na CAL. Eu vinha de sete anos de trabalho rigoroso na escola que seguia a linha de Decroux, aonde não se chegava atrasado, não se deitava na aula, não se vinha com qualquer roupa e tinha todo um ritual que eu acho importante preservar. Decroux dizia para os alunos “Isso aqui não é uma aula de teatro e sim de moral”, ele também dizia “a mímica corporal é uma arte que coloca o ser humano de pé, quando o mundo está sentado”.
Ele afirmava que era por preguiça que a gente deixava vir as guerras, o desemprego. Ele vinha de uma família de proletários anarquistas e ele estudou os movimentos do ser humano, da produção artesanal à produção de ideias.
Ele queria mostrar com isso que era possível transformar a matéria e, do mesmo modo, pela ação, transformar as ideias.
E a CAL aderiu essa nossa proposta. A gente fez a montagem com preparação de um ano porque o teatro envolve uma série de coisas.
E Memórias do Velho Mundo foi uma aventura maravilhosa com uma pesquisa clownesca. Nosso primeiro espetáculo foi uma comédia.
INV - Como foi o processo de criação do método da oficina do Stephane de Máscaras Balinesas?
ANA:
Ele se inspirou na Ariane Mnouchkine com o método que ela usa no Theatre du Soleil. O que ele desenvolveu de próprio e particular é a ideia da tradição de um contador de história num material que pode ser muito rico na hora de entrar em cena, com uma preocupação pedagógica, pois o Stephane pensa como ator.
Ele é um farejador intuitivo da cena e com uma criatividade excepcional. E acredita, como Arianne, que o músculo mais importante para o ator é a imaginação.
A oficina é um trabalho para treinar a imaginação e que depois ajuda o ator a construir num espaço vazio.
Tem um trabalho épico narrativo inspirado nos contadores de histórias artistas de rua que vimos em Marrocos e no Brasil.
INV - Além do Encontro Mundial das Artes Cênicas servir de fonte de inspiração para a Trilogia da Guerra, como foi o processo para a escolha do conflito da Bósnia em Histórias de Família, o conflito israelense e palestino em O Dragão e o conflito do Afeganistão visto em Kabul?
ANA:
A coisa vem meio do acaso. Por exemplo, quando a gente montou Cartas de Rodez, a proposta inicial era Diário de um Louco, de Nicolai Gogól, e para alimentar este processo nós fomos procurar escritas de Artaud que comeu Gogól de forma canibal.
O caminho vai nos apontando. No caso da Trilogia da Guerra começou com a minha vontade de falar sobre a violência e como eu sou curadora do ECUM, naquele ano eu levei a proposta de Teatro em Tempos de Guerra e como o teatro dialogava com a questão da violência.
Lá, eu ouvi a história do Irã por uma iraniana que eu convidei e vi que eles estavam impedidos de fazer teatro, as mulheres eram proibidas e isso me comoveu.
Então a Trilogia foi uma homenagem, uma vontade de afirmar o teatro como um lugar para pensar o mundo e o tempo que vivemos.
E a gente começou a estudar os conflitos, mas enxergando a guerra não como um conflito de fronteira e sim interna, pois o inimigo está do seu lado, ele é seu irmão, seu vizinho. Com O Dragão, pensamos em contar sobre as mães que sofrem a perda de seus filhos.
A gente quis ir ao encontro do outro, com outras culturas. E tudo isso dialoga com a nossa realidade também. Depois o Afeganistão trazendo este extremo do outro e a Histórias de Família, a gente quis falar da infância através de um texto de uma autora.
INV - De todos esses espetáculos, qual você mais gostou de dirigir e por qual motivo?
ANA:
O espetáculo que eu tenho mais saudade é o Savina, pois foi muito marcante. Foi vigoroso o processo. Os atores se transformaram. Foi profundo.
Era muito difícil, pois os ciganos são inapreensíveis, porque eles são ciganos e o resto da humanidade são os gajís (os não ciganos). Essa fronteira que é colocada logo de início nos desafiou o tempo todo.
Não basta se vestir de cigano. Como se transformar nesse outro que é muito diferente de nós? Quando eu trabalhava numa escola do subúrbio da França, tinha um aluno cigano e dava para perceber porque tudo nele falava dessa cultura, eu não consigo definir, mas era inapreensível.
E eu percebi que era outra história. Na peça, estudamos o romaní e começamos ali a desenvolver a língua afetiva.
A maior líder cigana no Brasil, a Míriam Stanescon, veio nos ver e aí se abriu para nós a comunidade cigana e nós fomos acolhidos, ela falou que foi a primeira vez que viu a cultura dela sendo representada com respeito.
A gente participou dos ritos com eles e realmente Savina foi uma grande aventura.
INV - Vocês se depararam com vários teatros em suas viagens, qual desses teatros que vocês mais se encantaram? De onde e por qual motivo?
ANA:
O teatro balinês, porque a vida e o teatro estão completamente ligados. Eles passam a maior parte do tempo dedicados às artes e a beleza, eles estão sempre enfeitando as ruas e a eles mesmos.
E eles se apresentavam para os deuses. E lá a gente tinha a visão muito clara de que o invisível e o mistério, os vivos e os mortos convivem e isso foi muito marcante.
É um teatro de formas e aparições, pois a gente acredita que a técnica e a forma são onde o teatro pode aparecer. Esse é o nosso teatro.
INV - Como enxerga o teatro da sociedade espetáculo? Concorda que a arte esteja em crise?
ANA:
Não acho que a arte esteja em crise. O que está crise é a sociedade. E nesse momento eu vejo que a arte encontra caminhos muito interessantes.
Como falei, não acredito que exista um único teatro, eu não julgo o teatro de ninguém. Eu diferencio o teatro do entretenimento do teatro como uma atividade que eu considero fundamental para a saúde de uma sociedade.
Esse teatro do entretenimento, ele responde a lógica do mercado, do capital, e ele tem essa função, esse teatro é tão distante de mim que eu nem julgo, ele faz parte do bolo, desse mesmo bolo em que tudo se transforma em entretenimento, como a religião, a profusão de igrejas que se transformaram num grande espetáculo e numa grande ferramenta do capital.
E tem outro teatro que tem uma consciência de que precisamos preservar alguma coisa que foge essa lógica, que é o de resistência que se mantém, nós temos um teatro na América Latina que é excepcional e às vezes a gente fica com aquela ideia de que o teatro possa estar em crise, mas não, na Europa sim, aqui não.
Aqui nós temos muito movimento de teatro de grupo, muitas experiências de teatro como resistência, que abrem possibilidades de transformação de seu entorno, de núcleos urbanos, é muito vigoroso, não acho que ele esteja em crise...
INV - Por que esse teatro do entretenimento está longe de você? Qual foi o processo político para ele se distanciar?
ANA:
Por tudo, por sua lógica. Nós não fazemos um teatro de consumo rápido, não montamos em dois meses, não é fast-food.
A gente não segue a lógica de fazer produto de consumo cultural, que seria captar algum dinheiro e fazer um produto que será vendido para quem possa comprar.
Nós nunca fizemos teatro que não fosse a preço popular ou gratuito. Nós trabalhamos essencialmente com recursos públicos, a gente faz muita parceria também com Sesc, que aposta na descentralização, como o projeto Palco Giratório.
Nós trabalhamos com o tempo de pesquisa e de transformação. Nós fazemos um teatro que não tem como único objetivo o divertimento, tem também o objetivo de dialogar com o nosso tempo, provocar a reflexão, agir em outros campos além dos palcos.
Nós trabalhamos com um teatro que não é muito atraente para um determinado setor. Foi uma experiência muito marcante apresentar pela primeira vez no Palco Giratório, quando fomos para o interior do Brasil, foi maravilhoso.
Nunca sentimos que não era acessível! Nós não fazemos teatro para a elite intelectual, nosso público sempre foi jovem.
Quando a gente vê teatro que agrada a um grupo somente, tem alguma coisa errada aí. Porque essas fronteiras sociais e geográficas não podem existir.
INV - A busca pelo teatro, você acredita que seja uma questão da divisão de classes? Quem mais procura e tem acesso ao teatro é a classe média?
ANA:
Sem dúvida, quem mais tem acesso a um determinado teatro é a classe média. Porque o teatro é pago.
Mas o Brasil é um país que tem tantas formas performativas. A gente tem que estar atento a tudo aquilo que impede isso de acontecer que são as correntes ideológicas que satanizam esse tipo de manifestação.
E no Brasil temos muitos projetos de descentralização e de acessibilidade, insuficientes ainda, mas existem.
Nós tivemos muitas transformações nos últimos anos e essas transformações dão um acesso maior à população mais pobre, é um processo que está em andamento que teremos resultados mais pra frente.
E muitas vezes o teatro alternativo, ou o teatro de grupo, é um teatro fantasiado, se chama grupo, mas é a lógica do mercado. Muitas vezes há teatro que se diz acessível, mas é só divertimento.
Mas eu não acho que o teatro seja mais uma propriedade da elite. Porque o teatro hoje tem outra função social, a função de resistência política.
INV - Quais são os dramaturgos com que vocês se identificam?
ANA:
William Shakespeare, com seus textos ricos de ações. Shakespeare é um formador de atores, porque ele escrevia como ator.
O teatro é feito na dramaturgia desses três sujeitos: o autor, o ator e o encenador. Dramaturgia significa o trabalho das ações.
O autor cria ações através de suas palavras, o ator cria ações através de seu corpo e de suas emoções e o encenador cria ações a partir dos elementos técnicos e cênicos.
É através da ação desses três trabalhadores das ações é que nasce o teatro. Então texto blá-blá-blá não me interessa.
Textos em geral com conflitos de certa classe média não me atraem. Por exemplo, tem um Projeto Paralelo que nós aceitamos fazer por conta do texto foi o Agreste Malvarosa, porque é um autor brasileiro contemporâneo e que nos coloca questões da intolerância de uma maneira poética, que oferece ao ator um campo enorme para se explorar.
INV - Atualmente vocês têm o Grupo de Estudos do Trabalho do Ator (GETA). O que vocês estão estudando lá?
ANA:
Nós tínhamos um grande material de pesquisa do ator, porém não era organizado. Então nós precisávamos criar um espaço para a pesquisa pedagógica.
Percebemos que temos um método e que começou a ser reconhecido até internacionalmente e vimos a necessidade de manter este espaço do GETA. E também queríamos fomentar outros grupos, outros professores.
Atualmente estamos estudando técnicas físicas com jogos de voz, jogos de causalidade e o método da narrativa cantada.
INV - Para fechar, você pode deixar uma mensagem para os jovens que gostariam de ser atores do Amok Teatro pela questão ideológica.
ANA:
Meu mestre (Decroux) me disse que o maior valor é a perseverança e permanecer de pé diante das adversidades, acreditando num projeto, pois eu acho que o Amok acreditou num sonho, porque é muito difícil manter um grupo motivado ideologicamente numa sociedade que a gente vive.
E quando você diz isso, Adriana, me comove, porque, muitas vezes, muitos jovens que vieram para o Amok eles saem pela sedução do mercado de trabalho, saem seduzidos por valores muito contrários aos que mantemos aqui.
Saem sem valorizar o que os mestres dizem, porque a gente vive numa sociedade que desvalorizou a educação, que vê o professor como um “empregadinho”, perdeu o valor que qualquer sociedade sadia deveria preservar em relação a seus professores.
Hoje, em qualquer escolinha privada, o professor briga com o aluno e a mãe vem defender o filhinho porque ela paga e, na lógica dela, o professor está lá para servi-la.
E eu vim de uma geração e de uma cultura em que os mestres são respeitados, a sala de aula é cultuada.
Agora a gente vive numa cultura de televisão que diz que qualquer um pode ser modelo, ator. Então isso é muito flácido.
É uma relação muito predatória. É difícil, mas é preciso levar muito a sério, entrar e trabalhar 8 horas por dia como qualquer trabalhador para nos sentirmos dignos. É preciso perseverar.
E vou citar Decroux quando disse numa vez que ele foi entrevistado em que perguntaram qual era a originalidade do trabalho dele e ele respondeu: “ não tem nada de original, eu faço o que está nos livros mais escolares, mas eu faço a sério”.
Não é ser original pagar os seus impostos, mas é ser muito original não tentar enganar com a sua declaração de imposto de renda. Não é ser original ser leal aos mestres que me formaram, mas é ser muito original realmente guardar o respeito aos mestres que nos formaram.
E o que a gente faz é levar à sério a ética. Decroux acreditou numa ideia que se propagou. E é isso.
Adriana Rolin
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