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quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Artigo: Aderbal Freire-Filho fala sobre o teatro contemporâneo O animal teatral

O diretor e ator Aderbal Freire Filho (Foto: Divulgação)
O diretor e ator Aderbal Freire Filho e a relação entre teatro e cinema (Foto: Divulgação)
Acabo de escrever um artigo para o próximo número da renovada Revista de Teatro da SBAT, sobre a relação entre teatro e cinema, insistindo numa obsessão (insiste-se em obsessões ou obsessões já se chamam assim por serem insistências?): o teatro contemporâneo tem data de estreia, isto é, nasceu a partir do tiro mortal que o teatro recebeu do cinema falado. Explico e depois retomo aqui de onde terminei lá no artigo para a Revista de Teatro.
Quando o teatro admitiu o cinema falado como sócio na grande empresa de diversões públicas Tudo é Mentira & Cia, da qual detinha o monopólio, o cinema falado foi aos poucos abocanhando ações e ações do negócio e acabou como sócio majoritário. A saída foi incluir na holding a empresa Teatro Contemporâneo.
Bom, dou a explicação nesses termos porque pode ser que falando a linguagem do mercado consiga me fazer entender mais facilmente. Continuo. Com a holding incluindo a nova empresa nascida depois da fusão, isto é, a marca Teatro Contemporâneo, o teatro recobra seu poder no negócio. E encaixo tudo isso num paradoxo, que repito sempre e que agora talvez fique mais claro: o teatro reduzido a parcela com o cinema falado (ou a ser apenas um sócio na nova sociedade formada pelos dois, no que antes era monopólio seu), em vez de ficar menor, como seria natural (além de sócio, ainda o sócio minoritário), o teatro cresceu. Isto é, criando a marca Teatro Contemporâneo, sua participação na holding ganhou a parte mais sofisticada da empresa, o setor de alta arte.
O teatro contemporâneo tem data de estreia"
Aderbal Freire-Filho
Não gosto muito do nome Teatro Contemporâneo. Como o teatro é a arte do presente, todo teatro é contemporâneo. Mas entendo porque é chamado assim, nem tudo é perfeito. O certo é que o teatro precisou se reinventar para não ser totalmente engolido pelo novo sócio no negócio. Lembrando: os últimos produtos lançados no mercado pelo antigo detentor do monopólio – o antigo teatro – passaram a ser produzidos pelo novo sócio – o cinema falado – com muito mais perfeição, com infinitamente melhor distribuição, enfim, uma concorrência interna pra lá de desleal. A saída do dono antigo, repito, foi rever toda sua produção e inventar novos e exclusivos produtos.
O antigo monopolista lembrou-se então que tinha, nos seus depósitos, materiais de primeiríssima qualidade que estavam abandonados, como as matérias primas do teatro elizabetano, da comédia dell’arte, da dança, do teatro grego. Tudo tinha sido atirado num velho armazém abandonado e desprezado, no período de dedicação exclusiva a fabricação de um produto burguês realista, a grife que vendia no momento da fusão. Pois agora era o caso de juntar esses velhos materiais com a criatividade (hum... invenção!) dos designers (também não é um bom nome para os encenadores) responsáveis pela criação do novo produto.
Então os diretores, encenadores, poetas da cena, como queiram chamar, abrem o palco, ampliam sua poética. É natural que caiba a eles esse papel, afinal estão com a mão na massa, são eles os que trabalham no atelier, a sala de ensaio. E como trabalham sobre uma literatura dramática pré-existente (mesmo que escrita imediatamente antes), o normal é que inventem um palco novo para um texto que ainda não conhecia esse palco e, por não conhece-lo, não explora suas potencialidades.
Criando novas poéticas na cena, o encenador amplia as possibilidades expressivas desses mesmos textos, especialmente se eles já são geniais, como os de Tchekhov e Nelson Rodrigues, por exemplo, que se debatiam no palco velho (de antes da criação da holding). Aos poucos os dramaturgos começam a conhecer o palco aberto (o teatro contemporâneo, a nova empresa da holding, as novas poéticas da cena, qualquer desses nomes serve) e passam a escrever com esse conhecimento, isto é, a escrever uma nova dramaturgia ou, melhor, uma dramaturgia aberta. O ponto de partida é o palco aberto. Claro, é possível que um novo dramaturgo tenha aberto sua cabeça na leitura de um outro novo dramaturgo que o precedeu e não diretamente no conhecimento vivo das novas poéticas do palco. Depois da primeira geração, multiplicam-se as origens. Mas o ponto de partida é a cena nova, o palco aberto.
Como construir uma linguagem própria, baseada no poder absoluto do ator sobre a cena e no poder absoluto da imaginação do espectador na plateia?"
Aderbal Freire-Filho
Amplia-se e, sobretudo, precisa-se a partir daí o conceito de teatralidade. Muitas vezes uma noção vaga, a teatralidade vai reger o novo teatro. É um conceito que se afirma primeiro por diferenciação: o teatro é o lugar da teatralidade dentro da nova sociedade (em todos os sentidos). E depois por exploração: como construir uma linguagem própria, baseada no poder absoluto do ator sobre a cena e no poder absoluto da imaginação do espectador na plateia? Como criar os símbolos que vão liberar a imaginação do espectador, a partir do corpo e da inteligência do ator?
Um fator importante do teatro contemporâneo é a natureza da ilusão produzida por ele. Diferentemente da ilusão no teatro da “quarta parede”, ou do cinema, a ilusão no teatro vivo (contemporâneo, etc) é descontínua, um jogo de armar e desarmar. O espetáculo tem que agarrar a consciência do rei no meio dessa descontinuidade, a verdade e a mentira alternando-se, os truques desvendados. Por isso, precisa ser feito sobre uma matéria muito especial: a teatralidade, a rede que combina o ator e a nova poética da cena.
O russo Nicolau Evreinof dizia que todos os homens têm um instinto de teatralidade. O que seria isso? Seria, diz ele, a necessidade que todos temos de contrapor imagens da fantasia às imagens da realidade. E aí residiria a necessidade do teatro. É também essa a semente de onde brota naturalmente o teatro, como uma das primeiras manifestações do homem. Cento e tantos anos depois desse russo ter feito essa revelação, o teatro volta a ser o lugar onde melhor esse instinto é satisfeito. No teatro realista, assim como no cinema, diante da ilusão perfeita, o homem recebe de outros as imagens da fantasia, para contrapor às suas imagens reais. É muito bom. Mas é melhor ainda ser também o artista da plateia, que joga o jogo da ilusão, isto é, que contribui com suas fantasias para a festa. E é assim no teatro, digamos, contemporâneo.
É verdade que no fundo do peito, o instinto de teatralidade é sempre rebelde, mesmo diante das imagens autoritárias da realidade ou do cinema. Como nos versos de João Cabral de Mello Neto: “O cachorro que devia ser faminto / tem um ar calmo de sesta. / A vida ela própria não parece representada: / as nuvens correm no céu / mas eu estou certo de que a paisagem é artificial / eu que conheço a ordem do diretor: / - não olhem para a objetiva! / e sei que os homens são grandes artistas / o cachorro é um grande artista.” O poema, sábio João Cabral, tem o título de "Pirandello I", levando o nome de um dos primeiros artistas do teatro contemporâneo, dos primeiros a fazer da ilusão um jogo.
Preferi valer-me da poesia para rodear o território da teatralidade, essa dimensão recuperada pelo teatro contemporâneo"
Aderbal Freire-Filho
E vou continuar no universo poético de João Cabral de Mello Neto para pensar no teatro contemporâneo como a volta ao teatro fundamental: “Deixa que no teu pensamento viajem apenas / os pensamentos que estiveram presentes / na cabeça do primeiro homem / quando ele foi ao teatro.”
Preferi valer-me da poesia para rodear o território da teatralidade, essa dimensão recuperada pelo teatro contemporâneo. Tenho um encontro marcado com dois mestres e amigos e pode vir deles a palavra que torne mais claro esse discurso. Com José Sanchis Sinisterra, dramaturgo e descobridor dos teoremas mágicos da escrita do teatro, e com Marco Antonio de La Parra, também dramaturgo, construtor de mundos a partir de pequenos detalhes. Um espanhol, o outro chileno.
Na excelente série A Teatralidade do Humano, que acontece uma vez por mês no Oi Futuro, do Flamengo, vamos estar os três, esta semana, procurando uma geografia, as fronteiras do teatro. E procurando definir o indefinível, a teatralidade. Pode ser que.
*Aderbal Freire-Filho é dramaturgo, ator e diretor teatral

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