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quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Você é um ser humano ou um abutre? - Kevin Carter


Espreitando a morte, de Kevin Carter, em 1993


Você é um ser humano ou um abutre?


A imagem acima é uma famosa fotografia com a qual o fotógrafo Kevin Carter ganhou o prêmio Pulitzer de foto-jornalismo em 1994. Tomada na região de Ayod, uma pequena aldeia em Suam, a imagem retrata a figura esquelética de uma pequena menina, totalmente desnutrida, recostando-se sobre a terra, esgotada pela fome, e a ponto de morrer, enquanto em um segundo plano, a figura negra de um abutre se encontra espreitando e esperando o momento preciso da morte da garota. Kevin Carter disse que esperou em torno de vinte minutos para que o abutre fosse embora, mas isto não aconteceu. Então rapidamente tirou a foto e fez o abutre fugir dali, açoitando-o. Em seguida, saiu dali o mais rápido possível. O fotógrafo criticou duramente sua postura por apenas fotografar, mas não ajudar, a pequena garota. Kevin Carter escreveu, logo depois de ganhar o prêmio Pulitzer pela foto, que o ser humano, ajustando suas lentes para tirar o melhor enquadramento do sofrimento daquela menina africana, também é outro abutre na cena. Quatro meses depois, deprimido pela culpa de não ter ajudado a menina a se salvar do abutre e, também, conduzido por uma forte dependência às drogas, Kevin Carter suicidou-se.

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Da fotografia

A fotografia é de uma menina sudanesa, que estava se arrastando em direção a um posto de alimentação. Foi registrada pelo fotógrafo sul-africano Kevin Carter, em 1993. A guerra no Sudão O Sudão (antiga Núbia), em 1820 tornou-se colônia britânica e em 1899 foi submetido ao domínio egípcio-britânico. Em 1956 obteve a independência. Começou, no sul, a guerrilha do Exército de Libertação do Povo Sudanês (SPLA). Depois de vários golpes, em 1989 tomou o poder o general Omar al-Bashir, que instalou uma ditadura militar. Seu regime foi marcado pela intensificação dos combates e, em 1991, adotou um Código Penal baseado na lei islâmica. Os combates entre a guerrilha do SPLA e o governo islâmico provocaram o êxodo de milhares de pessoas. Cerca de 600 mil refugiados morreram de fome no sul, a 800 km de Cartum, a capital, em 1993.
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Do fotógrafo

Kevin Carter (1961-1994) fazia parte de um grupo de quatro fotógrafos, jovens, de classe média. Os outros três eram: Greg Marinovich, Ken Osterbroek e João Silva, um moçambicano educado em Portugal. Tinham o apelido de The Bang Bang Club, dado pela imprensa internacional da África do Sul, pois eram destemidos e às vezes extremamente descuidados para conseguir imagens violentas da guerra.
A história dos quatro fotojornalistas sul-africanos foi contada no livro The Bang Bang Club, por Greg Marinovich, co-assinado por João Silva. Conta a saga do grupo que, diariamente, se dirigia às cidades próximas a Johanesburgo para fotografar a fase mais violenta da luta entre os partidários do ANC (African National Congress) de Nelson Mandela e os do líder zulu Buthelezi, no final do apartheid.

"João e eu também vimos muitas crianças morrer à nossa frente, na Somália, e só fotografávamos. Tragédia e violência produzem imagens fortes. Somos pagos para isso. Mas há um preço embutido em cada imagem dessas: um pedaço da emoção, da vulnerabilidade, da empatia que nos torna humanos se perde a cada vez que acionamos o botão da câmera".
Greg Marinovich

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O Clube do Bangue-bangue

Kevin tinha visto João e foi na direção dele depressa, muito agitado. “Cara”, pôs uma mão no ombro de João e cobriu os olhos com a outra, “você não vai acreditar no que acabei de fotografar!”. Esfregava os olhos, mas não havia lágrimas: era como se tentasse apagar a lembrança do que fotografara, do que lhe ficara gravado na retina.

João olhou desconfiado. Não gostava dessa história de “você não vai acreditar” em nenhuma situação, muito menos quando ele próprio não tinha visto oportunidade nenhuma de uma foto excepcional. Mas Kevin continuou sem notar a expressão de ceticismo do amigo. ”Eu fotografava uma criança ajoelhada, aí mudei de ângulo e, de repente, havia um abutre atrás dela!”. Kevin estava excitado, falava muito rápido. “Continuei a fotografar, fiz um montão de filmes!”. Gesticulava muito, como costumava fazer quando se entusiasmava ao contar alguma coisa.

João se animou. “Onde?”, perguntou e olhou ao redor na esperança de ver a cena impressionante. Se ainda estivesse lá, precisava fotografá-la. “Bem ali!”, disse Kevin ao apontar, frenético, para um ponto cinqüenta metros adiante deles. João viu uma criança deitada de cara no chão seco e cinza-amarronzado. Parecia com a que ele havia fotografado fazia pouco, mas não havia abutre antes e nem agora. “Eu enxotei o abutre!”. Kevin estava de olhos arregalados, falava rápido demais e atropelava as palavras. Não parava de esfregar os olhos com a bandana verde que usava em torno do pescoço. “Eu vejo tudo isso e só consigo pensar em Megan”. Acendeu um cigarro e tragou fundo e cada vez mais se emocionava. “Mal posso esperar para abraçá-la quando chegar em casa”.

A filha de Carter, Megan, tem uma visão muito diferente da fotografia premiada: «Eu vejo a criança em sofrimento como o meu pai. E o resto do mundo é o abutre.»
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Trecho do livro “O Clube do Bangue-bangue”, de Greg Marinovich e João Silva, Cia das Letras, que relata a Guerra dos Albergues, episódio que antecedeu a democracia e o fim do apartheid na África do Sul. Este trecho narra como Kevin Carter fez a famosa foto da criança, no Sudão, tendo à sua espreita um abutre que esperava por sua morte.

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Veja o documentário!




4 comentários:

  1. Cada vez que olho para essa foto sou tomado por uma sensação que ultrapassa meus olhos e caminha direto para a emoção. Uma mistura de ódio e vergonha. É como se ela fosse uma síntese do mundo em que vivemos! Como nós seres humanos podemos permitir que tal atrocidade ocorra?
    Relatos posteriores disseram que viram essa menina se levantar e continuar sua jornada. Contudo ninguém soube quem era ou se conseguiu chegar ao campo de refugiados...

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  2. que triste isso... alguém se preocupar mais em tirar a foto do que em ajudar uma criança... No fundo ele era uma pessoa triste mesmo...digno de compaixão...Qualquer pessoa que aja desta maneira, com certeza precisa de mais ajuda do que a própria criança...

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  3. A missão do Carter foi a de denunciar as atrocidades humanas daquela situação. Havia muito a ser fotografado e ele o fez. Registrando essas imagens ele nos conscientiza e compartilha a responsabilidade conosco. Agora somos nós que temos a incumbência de lutar para que isso não mais aconteça. Nós os acomodados ao conforto de um mundo injusto de predominância do capital sobre o valor da vida humana seremos os abutres até que aprendamos com o sofrimento dele a formalizar a denúncia e a promover a mudança.

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