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segunda-feira, 6 de junho de 2011

Recado aos jovens da CAL, por Rubens Corrêa

Fui convidado para conversar com vocês sobre o ator; sei que muitos aqui jamais representaram, e outros deram apenas os primeiros passos neste caminho labiríntico que é o mundo da interpretação. É uma tarefa que exige de mim sensibilidade e coragem; acho uma grande responsabilidade falar aos jovens, e é com muita emoção e prazer que passo adiante as humildes sementes do meu trabalho artístico, com a esperança de que alguma utilidade possa ser encontrada nelas e que de alguma maneira elas possam lhes tornar a caminhada menos solitária e mais solidária, na medida em que esta receita muito pessoal provoque dúvidas e reconsiderações, ou toque o sagrado dentro de cada um de vocês, ou reacenda aquela esperança cega que Prometeu garantiu ser a conquista mais urgente para a sobrevivência do homem neste planeta.

O grande poeta e dramaturgo alemão Büchner escreveu numa cena de sua peça "Woyseck": "Cada ser humano é um abismo e a gente tem vertigens quando se debruça sobre um deles."

Acho que nós atores somos duplamente esse abismo-espelho: como seres humanos e como artistas. Nossa missão é provocar vertigem e o revisionamento do abismo dentro de cada espectador, para que depois de cada mergulho em nossos personagens-propostas essas pessoas pensem, se emocionem, compreendam e amem com nova e maior intensidade.

Eu, Rubens Corrêa, ator e artista de teatro, vinte e oito anos de profissão, e séculos e mais séculos de um longo período não sei onde, ofereço a vocês com apaixonada humildade o meu aprendizado nesta caminhada em cima das brasas sem se queimar que é a condição necessária para poder representar e viver com algum significado neste nosso bizarro país sul-americano.
(...)

O CÁLICE

Representar para mim é a possibilidade que me foi dada de me comunicar com o meu semelhante através de uma troca de idéias, imagens, palavras, gestos e emoções. Um divertido, fascinante, e muitas vezes cruel jogo que mistura ficção e realidade, consciente e inconsciente, sagrado e profano, amor e ódio, vida e morte. Uma Paixão.

Através dos anos venho elaborando em cima das tábuas o meu trabalho, tentando sempre o difícil equilíbrio entre as conquistas técnicas e a simplicidade da execução. Aqueles instantes, todas as noites, em que represento um papel, são sempre os melhores momentos do meu dia. Isso quer dizer que levo para o palco meus sentimentos, minha idéia, minhas alegrias, meus abismos, meu horror e minha luz. Diariamente filtro essas emoções através das necessidades de cada personagem, e recebo de volta para mim mesmo uma nova compreensão de meus problemas - e acrescento ao personagem um novo enriquecimento conseguido "à quente", quer dizer, arrancado de dentro de mim mesmo.

Com o correr dos anos fui aprendendo a me observar como artista e ser humano, e fui tentando aproveitar em meus desenhos interpretativos a linguagem interior de minha vivência pessoal, para conseguir assim essa difícil união entre arte e vida, que foi sempre a minha grande aspiração.

Sempre acreditei que cada ator traz consigo um material fantástico, inimitável e único, muito difícil de ser conservado e desenvolvido nesta nossa era brutalizada e massificada.

É um cálice de cristal interior, que deve ser preservado e defendido através de muitos terremotos, muita contrariedade, muita decepção e sensação de abandono, mas com momentos também de enorme luminosidade que quando acontecem recompensam o artista e engrandecem o ser humano.

Cada ator é único e inimitável se ele mergulha com honestidade em si mesmo, e retrata o seu semelhante com generosidade, verdade e paixão. "Somos feitos da essência com que os sonhos são feitos" escreveu Shakespeare, e essa é a melhor definição que conheço sobre o mistério da representação.

O CAVALO

Cada ator tem obrigação de zelar e desenvolver o seu instrumental – sua voz, seu corpo: seu cavalo. Devemos transformar nosso corpo num grande arquivo de imagens com possibilidades de serem utilizadas em nossos futuros personagens; nossa voz deve poder miar, rugir, gemer, uivar – nossas mãos podem ser galhos de árvores, garras de feras, folhas secas ao vento – nossos pés, colunas de um templo, patas de animais. Nossos olhos devem poder reproduzir o enigma do olhar da esfinge, e a clareza cristalina de um poema de Brecht.

E mais, devemos nos preparar para poder receber com artística mediunidade a alma do mundo, as grandes interrogações do nosso tempo, a voracidade deste universo em constante transformação.

Devemos ser suficientemente fortes para poder reproduzir simultaneamente a maravilha e o horror do ser humano, a criatividade e a autodestrutividade de nós todos, homens, através desta difícil caminhada da vida.

O nosso cavalo deve então se preparar para poder assumir todas estas formas, e por isso ele tem de ser constantemente reabastecido e renovado.

O cavalo é também o estimulador de nossa energia, o conservador de nosso entusiasmo e de nossa fé; quando as crises vierem (e não tenham dúvida de que elas virão), nada melhor do que trabalhar na fortificação do cavalo, porque no mínimo estaremos crescendo durante a crise, estaremos trabalhando e temperando novas energias, adquirindo novas técnicas, novos conhecimentos. Podem ter certeza de que um bom cavalo torna o ator indestrutível.

O FOGO

O fogo através do tempo sempre foi o símbolo vivo da fé, do entusiasmo e da rebeldia; mantê-lo aceso dentro de nós é também um trabalho para a vida inteira. O fogo nasce de um estado de curiosidade natural e instintivo e pode ser desenvolvido através da conquista progressiva de uma cultura geral, de uma observação apaixonada da história do homem, da história de todas as artes, da emocionante história do teatro – e um profundo sentimento de observação do ser humano – aqueles para quem realizaremos nossas mágicas, o nosso público. Esse fogo interno, uma espécie de grande rol central de energia e fé, é uma grande defesa contra a acomodação, e me parece ser a grande mola propulsora da criatividade; devemos estar sempre atentos aos seus chamados, e é preciso não deixar nunca, custe o que custar, esse fogo esmorecer, porque, caso isso aconteça, seremos os artífices de uma arte morta, sonâmbula, inútil, feia e resignada.

O MENINO

A recuperação da liberdade da infância através da vida adulta foi sempre uma das minhas metas; a criança é uma fonte incrível de informação artística - e a criança que nós fomos recuperada através do nosso lado lúdico tão atrofiado pelo correr dos anos – pode nos servir de guia, mas um guia muito especial, que caminha alegre e despreocupado, que sabe descobrir o mágico dentro do cotidiano, intuitivamente

Um grande exemplo da presença do menino dentro de um artista está na figura e na obra do pintor Pablo Picasso. "Eu não procuro, eu acho" afirmava o grande pintor. E essa fala denuncia o menino que Picasso levava dentro de si, que pintava cerâmica usando como base para o desenho a espinha do peixe que tinha comido no almoço, ou fazia fantástica escultura aproveitando uma roda velha e quebrada de uma bicicleta encontrada na estrada durante seu passeio matinal. O menino traz alegria e descompromisso racional para o trabalho artístico. No Passeio Público do Rio de Janeiro tem um menino-anjo esculpido num bebedouro (se não me engano de Mestre Valentim) com a seguinte legenda: "Sou útil, inda brincando". Essa é a lei e a sabedoria dos meninos.

Acho que preservando o cálice, domando o cavalo, estimulando o fogo e soltando o menino, o artista está preparado para viver e criar uma vida bela e uma obra útil para a coletividade.

* Aula inaugural da Cal (Casa das Artes de Laranjeiras) – Rio de Janeiro (RJ), em 12 de março de 1984. Reproduzida de uma apostila do autor.

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