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quinta-feira, 7 de abril de 2016

Por um adequado ensino de História da África, por Luciano Loureiro

O continente africano – geograficamente - encontra-se partilhado pelos quatro hemisférios do planeta. Cortado pelo Meridiano de Greenwich e pela Linha do Equador, possui 30 milhões de km² sendo quase um terço destes de desertos. Com seus 55 países sua população ultrapassa os setecentos milhões. Apresenta grande diversidade física, étnica, cultural e econômica. Todos esses elementos contribuíram para uma subdivisão regional, que estabeleceu a África Mediterrânea (também chamada de África Islâmica ou Setentrional) e a África Subsaariana. Essa regionalização do continente tem o deserto do Saara como divisor natural e os aspectos humanos, em especial a religião, como fator cultural. A África Mediterrânea, situada ao norte do deserto do Saara, é composta por apenas cinco países: Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito, além do território do Saara Ocidental. Já a África Subsaariana, compreende toda a área localizada ao sul do Saara, correspondendo a mais de 75% do continente. Mesmo sendo esse continente de dimensões gigantescas e possuidor de uma cultura e história ancestral que remonta ao berço da humanidade, pouco conhecemos dele. Quase sempre o olhar sobre a África se dá como se essa fosse uma só. Povoada por aldeias rupestres e reduzida às paisagens das Savanas onde homens usando trajes e armas primitivas caçam seu alimento. Um lugar arcaico, exótico e longínquo, separado de nós por séculos de atraso tecnológico e humanista, que detém como características mais importantes, além dos seus leões, elefantes e girafas, ter sido ele o provedor de mão de obra escrava para o mercado atlântico. O estereotipamos - recorrentemente - como um continente de desigualdades sociais, dizimado por guerras, doenças, ignorância e miséria.  A verdade é que reproduzimos um olhar discriminatório e eurocentrista que abdica das diferenças e de suas peculiaridades. Precisamos entender que a África são muitos e diferentes países. Povos com tantas distinções culturais e linguísticas como são distintos os povos europeus, americanos ou asiáticos.

Felizmente, em legislação recente, o Ministério da Educação busca corrigir esses equívocos e desinformação sobre a África, desde muito existente em nossos currículos, e mais especificadamente no ensino de História nas escolas de Ensino Básico inserindo a matéria “História da África” nos currículos nacionais das diversas modalidades e níveis de ensino. Esta ação é o reconhecimento que a exclusão da “História da África”, durante toda a história do ensino no Brasil, é um entre vários exemplos do racismo. Ela exclui, por forças simbólicas, o africano e/ou o afrodescendente da História do Brasil. Importante salientar que esse resgate ou inserção vem prioritariamente através de esforços dos movimentos negros, com participação dos meios acadêmicos, com o objetivo em fomentar pesquisas na direção de elaborar programas que sejam capazes de produzir análises críticas e fundamentações teóricas que visem problematizar com mais profundidade a História da África e as relações com nossos caminhos, tropeços e avanços enquanto nação.

Mas por que estudar a África? Que importância isso tem? O que conhecemos dela? O que sabemos das nações africanas ocupando múltiplos espaços e identidades? Nosso conhecimento sobre esse continente, na maior parte das vezes, não passa de um amontoado de informações preconceituosas que prejudicam a possibilidade em se constituir uma visão mais abrangente e rica de sua história e das fecundas influências sobre as engrenagens que moldaram nossa identidade. É evidente, que isso já está descrito - por uma quantidade ainda que insuficiente de textos - mas de relevância sobre o tema e que denunciam a impossibilidade de se ter uma melhor compreensão de nossa história e pluralidade cultural. Sem se conhecer os fatores pertencentes à História Africana, como sermos capazes de entender melhor os matizes do nosso próprio processo civilizatório? Poderíamos, apenas a título de exemplo, citar como o cultivo do açúcar, algodão ou café foram monoculturas economicamente fundamentais ao desenvolvimento do Brasil e que são conhecimentos oriundos não de uma Europa civilizada, mas de um passado africano. A construção de todo um patrimônio artístico que coloca o Brasil numa esfera diferenciada e única. As artes plásticas desde o barroco aos dias atuais, a música, a dança, o teatro, a literatura. Embora durante a maior parte da História do Brasil esses artistas negros tenham sido colocados compulsoriamente no anonimato, lá estão as marcas indeléveis de sua criação e da herança africana que carregam em sua expressão - é só querer ver e sem muito esforço.  Nossa própria língua em sua raiz, tendo em sua base, não apenas influências do Latim, mesmo que predominante em nosso idioma, não deveríamos ignorar a presença Árabe e do Suarili, este último absolutamente obscurecido. Isso, sem esquecer da presença indígena em nosso linguajar. Esse conjunto de influências propiciou o gosto brasileiro pela oralidade, como na expressões e modos de lidar com nosso vocábulo: palavras, frases e orações que foram e são urdidas de uma maneira muito particular e que dão a Língua Brasileira toda uma complexidade e sofisticação.

Outro importantíssimo exemplo, que não poderíamos nos furtar em pontuar, foi a existência dos Quilombos desmistificando a ideia do negro escravo submisso e passivo às ações criminosas de seus “donos”. Longe da caricatura do negro fujão, foi símbolo de luta e resistência e conhecer a complexidade dos Quilombos e do que eles representaram e representam significa, antes de tudo, saber sobre a complexidade e movimento das sociedades africanas antigas adaptadas à realidade brasileira, conhecimento infelizmente distante ainda das nossas salas de aula.

Poderíamos ainda citar outros exemplos de influência africana. Esta, sendo o berço da humanidade, onde surgem os primeiros humanoides. Falar das civilizações que ali floresceram e que são definitivas na fisionomia de uma cultura ocidental. O comércio originário na África com ela mesma e para o resto do mundo, inclusive nas Américas bem antes de Colombo. Se usássemos de uma metáfora transformando o Brasil em uma árvore alimentada pela seiva nutritiva oriunda de três veias subterrâneas, uma dessas seria africana. Portanto, não se explica a ideia de que a África e os afrodescendentes contribuíram e/ou contribuem com a formação de uma cultura brasileira. O próprio termo contribuir já expressa o caráter discriminatório: é como se esse fosse um tempero que ajudou a dar algum sabor à sopa. A verdade e que a África não é tempero, é ingrediente protagonista nesse caldo de cultura, fazendo parte contundente de tudo que fomos e somos. Assim, é imprescindível que a História da África passe a ser trabalhada em sala de aula com o objetivo em desmistificar criticamente, a partir de argumentos históricos e teóricos, estereótipos e clichês preconceituosos presentes no imaginário de grande parte da população: nas falas de pessoas, nas notícias de jornal, nas imagens do cinema, da televisão e etc.

Sabemos que o processo de ensino da História da África encontra dentro das escolas forte resistência de parte de pedagogos, professores e alunos motivado, principalmente, pelo preconceito e desinformação. Embora tenhamos avançado nesse ponto, são notórios os obstáculos postos a inserção deste conteúdo na grade curricular. Além disso, não são poucos os livros didáticos que ainda insistem em tratar o negro como sinônimo de escravo. Basta observarmos, como exemplo, as aquarelas de Debret representando sucessivamente imagens do negro acorrentado, açoitado, inerte. Somando-se a isso a mídia parece corroborar com essa ideia apresentando massivamente uma África exclusivamente de florestas, apesar de que apenas um pouco mais de três milhões de km² do seu território serem preenchidos por estas. Quanto ao africano, sistematicamente apresentado como um faminto, miserável, raquítico necessitando urgentemente de ajuda branca e humanitária. O racismo, velado ou não, ainda é bastante presente neste contexto, sendo uma reação ao imaginário discriminatório que nos persegue. Assim, a desconstrução do racismo dentro do universo escolar deve ser realizada através de um sistemático e incansável processo do ensino/aprendizagem onde uma África civilizada, de ontem e de hoje, seja apresentada em toda sua diversidade e conhecimento: com suas cidades, comércio, manufaturas, escrita, cultura, arte, matemática. Mostrar que os que ali viviam e vivem não eram e não são um bando de selvagens de intelecto inferior, perdidos, vivendo isolados na selva sem compreender o mundo em que viviam ou vivem.

Apresentar essa África civilizada é mostrar aos nossos alunos que em sua história houve civilizações de grande porte, ocupando vastos territórios e possuidoras de organizações sociais complexas. O farto comércio entre povos com as caravanas costurando inter-relações econômicas, políticas e fomentando o surgimento de estados nacionais. Os livros didáticos não cansam em apresentar o continente europeu com o detentor do conhecimento. Contudo, os índices de analfabetismo e ignorância entre as populações europeias durante todo o período da Idade Média eram enormes. Foi apenas nas cruzadas que os europeus passaram a ter acesso a conhecimentos mais sofisticados da matemática, física, química e onde a escrita ganha novos contornos. Fato que denota que a África e as Nações Árabes já eram muito mais sofisticadas tecnologicamente do que a Europa e se mantiveram assim até o início do século XVI. 


Luciano Loureiro
lucianocloureiro@gmail.com
2014


PS. Este texto pode ser utilizado, integralmente ou em parte, desde que respeitado os direitos autorais e citação do autor.