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segunda-feira, 16 de junho de 2014

Michael Löwy: “Dez teses sobre a extrema direita na Europa”

Michael Löwy

I. As eleições europeias confirmaram uma tendência que se observa desde há alguns anos na maioria dos países do continente: o espetacular crescimento da extrema direita. É um fenómeno sem precedente desde os anos 30 do século XX. Em vários países esta corrente obteve entre 10 e 20%, e em três países – França, Inglaterra, Dinamarca, atinge já entre 25 e 30% dos votos. De facto, a sua influência é mais vasta que o seu eleitorado: contamina com as suas ideias a direita “clássica” e igualmente uma parte da esquerda social-liberal. O caso francês é o mais grave, o avanço da Frente Nacional ultrapassou todas as previsões, inclusive as mais pessimistas. Tal como dizia o site Mediapart num editorial recente, “O tempo acabou” ["Il est minuit moins cinq"].
II. Esta extrema direita é muito variada, pode-se observar uma vasta gama, desde partidos abertamente neonazis, como o grego Aurora Dourada, até forças burguesas perfeitamente integradas no jogo político institucional como a UDC suíça. O que têm em comum é o nacionalismo chauvinista, a xenofobia, o racismo, o ódio aos imigrantes – sobretudo os “extra-europeus” – e os ciganos (o povo mais velho da Europa), a islamofobia, o anti-comunismo. A isto pode-se acrescentar, em muitos casos, o anti-semitismo, a homofobia, a misoginia, o autoritarismo, o desprezo pela democracia, a eurofobia. Em relação a outras questões – por exemplo, sobre o neoliberalismo ou o laicismo – esta corrente está mais dividida.
III. Seria um erro achar que o fascismo e o antifascismo são fenómenos do passado. É verdade que hoje não encontramos partidos de massas comparáveis com o NSDAP alemão dos anos 30, mas já nesta época o fascismo não se limitava a um único modelo: o franquismo espanhol e o salazarismo português eram muito diferentes dos modelos italiano ou alemão. Uma parte importante da extrema direita europeia de hoje tem uma matriz diretamente fascista e/ou neonazi: é o caso do Aurora Dourada, do Jobbik húngaro, do Svoboda e do Setor Direito ucranianos, etc.; mas também há outros, como a Frente Nacional, o FPÖ austríaco, o Vlaams Belang belga e outros, cujos quadros fundadores tinham estreitos vínculos com o fascismo histórico e as forças colaboracionistas com o Terceiro Reich. Noutros países – Holanda, Suíça, Inglaterra, Dinamarca- os partidos da extrema direita não têm origens fascistas, mas partilham com os primeiros o racismo, a xenofobia e a islamofobia.
Um dos argumentos utilizados para mostrar que a extrema-direita mudou e que não tem muito a ver com o fascismo é a sua aceitação da democracia parlamentar e da via eleitoral para chegar ao poder. Mas recordemos que um certo Adolf Hitler chegou à Chancelaria por uma votação legal do Reichstag, e que o Marechal Pétain foi eleito Chefe de Estado pelo Parlamento francês. Se a Frente Nacional chegasse ao poder através das eleições – uma hipótese que infelizmente não podemos desprezar -, que restaria da democracia em França?
IV. A crise económica que assola a Europa desde 2008, tem, em geral – com a exceção da Grécia – favorecido mais a extrema direita que a esquerda radical. A proporção entre as duas forças é totalmente desequilibrada, contrariamente à situação europeia dos anos 30, que viveu, na maioria dos países, um crescimento paralelo do fascismo e da esquerda antifascista. A extrema-direita atual beneficiou sem dúvida da crise, mas isso não explica tudo: em Espanha e em Portugal, dois dos países mais castigados pela crise, a extrema direita continua a ser marginal. E na Grécia, se o Aurora Dourada teve um crescimento exponencial, foi largamente ultrapassado pela Syriza, a coligação da esquerda radical. Na Suíça e na Áustria, dois dos países poupados pela crise, a extrema-direita racista supera os 20%. É preciso pois evitar as explicações economicistas que frequentemente são avançadas pela esquerda.
V. Os fatores históricos jogam sem dúvida um papel: uma longa e antiga tradição anti-semita em alguns países; a persistência de correntes colaboracionistas após a Segunda Guerra Mundial; a cultura colonial, que continua a impregnar atitudes e comportamentos muito para além da descolonização – não só nos antigos impérios, mas também em quase todos os países da Europa. Todos estes fatores estão presentes em França e contribuem para explicar o sucesso do lepenismo.
VI. O conceito de “populismo”, empregado por certos politólogos, pelos média e até por uma parte da esquerda, é absolutamente incapaz de dar conta do fenómeno em questão, e só serve para semear a confusão. Se na América Latina, de entre os anos 30 e 60 do século XX, o termo correspondia a algo relativamente preciso – o varguismo, o peronismo, etc. – o seu uso na Europa a partir dos anos 90 é cada vez mais vago e impreciso. Define-se o populismo como “uma posição política que toma o partido do povo contra as elites”, o que é válido para quase qualquer movimento ou partido político. Este pseudo-conceito, aplicado aos partidos de extrema-direita, conduz – voluntária ou involuntariamente – a legitimá-los, a torná-los mais aceitáveis, quando não simpáticos – quem não é pelo povo e contra as elites? – evitando cuidadosamente os termos que provocam rejeição: racismo, xenofobia, fascismo, extrema-direita. “Populismo” é também utilizado de forma deliberadamente mistificadora pelas ideologias neoliberais para criar uma amalgama entre a extrema-direita e a esquerda radical, caraterizadas como “populismo de direitas” e “populismo de esquerdas”, opostos às políticas liberais, à “Europa”, etc.
VII. A esquerda de todos os quadrantes, tem – com raras exceções – subestimado o perigo. Não viu vir a onda castanha, e portanto não achou necessário tomar a iniciativa de uma mobilização antifascista. Para certas correntes da esquerda, a extrema-direita não é mais do que um produto da crise e do desemprego, sendo estas as causas há que as atacar, e não ao fenómeno do fascismo em si. Estes raciocínios tipicamente economicistas desarmaram a esquerda perante a ofensiva ideológica racista, xenófoba e nacionalista da extrema-direita.
VIII. Nenhum grupo social está imune contra a peste castanha. As ideias da extrema-direita, e em particular o racismo, contaminaram uma grande parte não só da pequena burguesia e dos desempregados, mas também da classe operária e da juventude. No caso francês isto é particularmente impressionante. Estas ideias não têm nenhuma relação com a realidade da imigração: o voto na Frente Nacional, por exemplo, cresceu particularmente em algumas regiões rurais que nunca viram um único imigrante. E os imigrantes ciganos, que foram recentemente objeto de uma onda de histeria racista bastante impressionante -com a complacente participação do anterior ministro “socialista” do Interior, Manuel Valls – são menos de vinte mil em toda a França.
IX. Outra análise “clássica” da esquerda sobre o fascismo é a que o explica essencialmente como um instrumento do grande capital para esmagar a revolução e o movimento operário. Ora, como hoje o movimento operário está muito enfraquecido, e o perigo revolucionário inexistente, o grande capital não tem interesse em apoiar os movimentos de extrema-direita, e portanto a ameaça de uma ofensiva castanha não existe. Trata-se, uma vez mais, de uma visão economicista, que não tem em conta a autonomia própria dos fenómenos políticos – os eleitores podem escolher um partido político que não tenha o favor da grande burguesia – e parece ignorar que o grande capital pode adaptar-se a qualquer espécie de regimes políticos, sem grandes escrúpulos.
X. Não há uma receita mágica para combater a extrema-direita. Há que se inspirar, com uma distância crítica, nas tradições antifascistas do passado, mas também há que saber inovar para responder às novas formas do fenómeno. Há que saber combinar as iniciativas locais com os movimentos sociopolíticos e culturais unitários, solidamente organizados e estruturados, à escala nacional e continental. A unidade pode-se fazer pontualmente com todo o espectro “republicano”, mas um movimento antifascista organizado não será eficaz e crível se for impulsionado pelas forças que se situam hoje dentro do consenso neoliberal dominante. Trata-se de uma luta que não pode limitar-se às fronteiras de um só país, mas deve organizar-se à escala de toda a Europa. O combate contra o racismo e a solidariedade com as suas vítimas é um dos componentes essenciais desta resistência.
* Artigo de Michael Löwy, publicado a 1 de junho de 2014 em Europe Solidaire Sans Frontières.
Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

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